sexta-feira, 2 de março de 2007

Delegados do povo ou donos do poder?

Delegados do povo ou donos do poder?

FÁBIO KONDER COMPARATO

Estamos ante parlamentares que falam sobre propostas que não leram, com o intuito de preservar a usurpação da soberania popularNA EDIÇÃO de maio de 1811 do "Correio Braziliense", Hipólito da Costa fez a seguinte profissão de fé: "Ninguém deseja mais do que nós as reformas; mas ninguém aborrece mais do que nós que essas reformas sejam feitas pelo povo; pois conhecemos as más conseqüências desse modo de reformar; desejamos as reformas, mas feitas pelo governo; e urgimos que o governo as deve fazer enquanto é tempo, para que se evite serem feitas pelo povo".

O grande jornalista teve o mérito de dizer sem eufemismos o que pensava. Hoje, quase dois séculos depois que tais palavras foram escritas, ninguém no meio político ousa dizer-se de direita ou antidemocrata, mas quase todos continuam plenamente convencidos de que o povo é, por natureza, incapaz de exercer a soberania. Esta pertence, por direito imemorial, àquele grupo que, por consolidado abuso de linguagem, insistimos em denominar "a elite".

Admite-se, quando muito, que o povo escolha periodicamente os seus tutores ou curadores. Mas a esmagadora maioria destes, como ninguém ignora, exerce o encargo no seu próprio interesse e benefício. A Constituição Federal de 1988 teve o grande mérito de iniciar o processo de desmontagem desse esquema cínico e perverso, ao afirmar, logo no primeiro de seus artigos, que o povo pode e deve exercer o seu poder soberano diretamente, e não apenas pela eleição de mandatários. Em conseqüência, dispôs expressamente em seu artigo 14 que o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, tanto quanto o sufrágio eleitoral, são manifestações da soberania popular.

Como era, porém, de esperar, esse mandamento constitucional foi desde logo interpretado como fórmula de retórica política, sem nenhum efeito prático. O povo pode continuar a eleger os seus autoproclamados representantes, mas dependerá sempre da autorização prévia destes para votar em plebiscitos e referendos. Foi para desfazer essa fraude oligárquica que a Ordem dos Advogados do Brasil ofereceu várias sugestões ao Congresso Nacional, prontamente transformadas em projetos de lei e propostas de emenda constitucional.

Agora, com o anúncio pelo ministro Tarso Genro de que o governo federal apoiaria tais proposições, as reações negativas no Congresso não se fizeram esperar.

Ouvidos por este jornal, quase todos os líderes de partidos disseram que retirar do Congresso Nacional a prerrogativa de comandar a realização de plebiscitos e referendos redundaria em concentrar mais poderes na pessoa do chefe de Estado, criando, assim, o risco de institucionalizar o "chavismo".

Sucede que, em ambos os projetos de lei originados na Ordem dos Advogados do Brasil -o de nº 4.718/2004, na Câmara, e o nº 1/2006, no Senado, este apresentado pelos eminentes senadores Eduardo Suplicy e Pedro Simon-, o presidente da República não tem poder de iniciativa nessa matéria. Os plebiscitos e referendos só poderão ser convocados por iniciativa do próprio povo ou de um terço dos deputados ou senadores (o que reforça sobremaneira o poder de fogo da minoria parlamentar contra o rolo compressor governamental).

Insinuou-se, também, que, pelo sistema proposto, o povo poderia decidir diretamente em plebiscito a reeleição indefinida do presidente da República. Insinuação maliciosa e falsa, pois, em ambos os projetos de lei, ao contrário do que dispõe a vigente lei nº 9.709, de 1998, as matérias suscetíveis de decisão em plebiscitos são taxativamente enumeradas -e entre elas não consta a reeleição do chefe de Estado.

Outros, ainda, declararam-se contrários ao "recall", tal como proposto, porque ele atingiria tão-só os parlamentares, poupando o presidente da República. Mais uma inverdade: na proposta de emenda constitucional nº 73/2005, em tramitação no Senado, a revogação popular de mandatos eletivos diz respeito não só aos membros do Congresso Nacional mas também ao presidente da República. Aliás, é sempre bom lembrar que esses institutos estão longe de ser novidades revolucionárias. A Suíça conhece e pratica com freqüência o referendo desde o século 15. O "recall" existe em 18 Estados da Federação norte-americana, em alguns deles há quase um século.

Em suma, estamos diante de parlamentares que se pronunciam sobre propostas que não leram, com o mal disfarçado objetivo de preservar uma inconfessável usurpação da soberania popular.


FÁBIO KONDER COMPARATO, 70, advogado, professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP, é presidente da Comissão de Defesa da República e da Democracia do Conselho Federal da OAB e fundador e diretor da Escola de Governo, em São Paulo. É autor, entre outras obras, de "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos".

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